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A criação de uma “inteligência artificial soberana” no Brasil foi defendida pelo governo federal durante o lançamento do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (Pbia) nesta terça-feira (30). O Pbia foi feito por uma equipe multidisciplinar do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, sob encomenda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Durante o evento, a ministra de Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, afirmou que o Brasil produz dados, cobiçados pelas big techs, capazes de alimentar uma cadeia produtiva de inteligência artificial. Por isso, o país precisaria de alternativas.
O plano cita, como objetivos, o desenvolvimento de uma “nuvem soberana” para agregar os dados do governo brasileiro e de “modelos avançados de linguagem em português, com dados nacionais que abarcam nossa diversidade cultural, social e linguística, para fortalecer a soberania em IA”.
O desenvolvimento dessa tecnologia iria requerer, além de dados brasileiros, de infraestrutura própria, como supercomputadores e data centers, e de força de trabalho especializada. O país ainda está aquém desses dois últimos critérios, segundo especialistas consultados pela Folha.
“O Brasil hoje, concretamente, não tem nenhum computador que consiga rodar grandes modelos de linguagem, como aqueles que estão orientando os trabalhos do Google, da OpenAI e da Anthropic“, diz o professor da USP Glauco Arbix, que pesquisa políticas de inovação.
Ainda assim, o plano do governo é visto pela comunidade científica como um avanço em relação à política vigente, a Ebia (Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial), criticada por não ter planejamento orçamentário. O Pbia dedica R$ 23 bilhões a projetos de IA, sendo quase R$ 14 bilhões voltados à iniciativa privada.
Os eixos nos quais o país precisa avançar, segundo o documento, são: infraestrutura e desenvolvimento de IA, formação profissional, aplicação de IA nos serviços públicos, nos negócios e a elaboração de um arcabouço regulatório.
Apesar de apresentado pelo presidente, o Pbia ainda depende de aprovação do governo em reunião ministerial, ainda a ser realizada.
O QUE MUDA COM IA EM PORTUGUÊS?
A criação de modelos avançados de linguagem em português é colocada como ponto-chave para a soberania digital em IA.
O governo classifica a medida como uma forma de garantir a redução de vieses, uma das maiores preocupações na utilização de IA em larga escala. No passado, modelos de empresas como Google e OpenAI se envolveram em polêmicas por atitudes discriminatórias.
O uso de português e dados brasileiros deve amenizar desvios de vieses culturais, mas não será solução definitiva para o problema, segundo Rodrigo Nogueira, CEO da Maritaca AI, startup de inteligência artificial com dados brasileiros.
“Os problemas que a gente tem no Brasil não vão embora por treinarmos modelos com português. Diminuir vieses e construir algo que represente os interesses do Brasil e de minorias ainda é um desafio”, diz. Para especialistas, reduzir preconceitos algorítmicos exige esforços contínuos de treinamento de modelos de IA.
A lógica mais interessante é reduzir a dependência dos dados de fora, na visão de Nogueira.
“Ficamos à mercê de empresas como a Meta e OpenAI e, se um dia elas decidirem parar de oferecer os produtos, ficamos na mão deles”.
Países na liderança da tecnologia, como China e Singapura, já têm as próprias IAs soberanas, para driblar as limitações idiomáticas e culturais dos modelos desenvolvidos nos EUA.
GOVERNO PROMETE SUPERCOMPUTADOR E INFRAESTRUTURA
O primeiro passo listado pelo governo para tirar esse plano do papel seria a construção de uma infraestrutura digital mais robusta. Para isso, seriam dedicados R$ 5,79 bilhões de investimento direto e outros R$ 2,3 bilhões em financiamento para o setor privado.
A estrela do anúncio foi um supercomputador de IA, ao custo de R$ 1,8 bilhão, que seria capaz de processar a quantidade de dados necessária para desenvolver um grande modelo de inteligência artificial.
Com cinco anos para sair do papel, o projeto aproveitaria a estrutura do computador Santos Dummont, instalado no Rio de Janeiro, e teria como fontes de verba o FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), da Petrobras e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
O projeto também cita investimentos de R$ 750 milhões para a fabricação nacional de peças de computadores avançados e chips, além de parcerias com outros países latino-americanos.
O Pbia ainda separa R$ 2,3 bilhões de crédito para financiar a construção de data centers, os grandes centros de processamento de dados que rodam programas avançados, como os sistemas de inteligência artificial.
O financiamento priorizará as regiões Norte e Nordeste e terá como critério eletivo o uso de fontes de energias renováveis. Ainda não há um cronograma definido para essa linha de crédito, que seria oferecida pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e pela Finep (Financiadora de Estudos e Projetos).
Para o professor da UFABC Sergio Amadeu, que integrou a equipe de tecnologia do primeiro governo Lula, é preciso investir para atingir soberania digital. “O plano aponta alguns recursos que precisamos ver se são suficientes.”
AÇÃO DE DADOS DEMANDA REFORÇO EM SEGURANÇA
Outro investimento-chave do Pbia seria a alocação de R$ 1 bilhão para o desenvolvimento de um sistema que agregue as diversas bases de dados sob gestão do governo. Essa é a estrutura chamada de nuvem soberana, pela ministra Luciana Santos.
O professor especialista em IA da PUC-SP Diogo Cortiz afirma que a estruturação de fontes de informação em português sobre os brasileiros facilita o processo de criação de modelos de linguagem no país. “Recentemente, por exemplo, criamos um dataset de emoções em português, porque antes tínhamos de usar um do Google, em inglês, traduzido para o português, e havia imprecisões.”
Além de arquivos textuais, como livros e jornais já em domínio público, armazenados na Hemeroteca Nacional e no Arquivo Nacional, a nuvem soberana pode centralizar os diversos cadastros mantidos pelo governo, que constam com dados pessoais e fotografias.
O diretor do Data Privacy Brasil Bruno Bioni avalia que a integração das bases de dados é um avanço, mas deve redobrar o cuidado com a segurança da informação do governo, que foi vítima neste ano de um número recorde de vazamentos de dados sensíveis.
Para Bioni, a menção explícita a investimentos de R$ 70 milhões em segurança da informação é um bom sinal.
Não existe nenhum país 100% pronto. É para isso mesmo que planos estratégicos servem. Prever, calcular, criar agenda, fomentar investimentos, diz Tainá Junquilho, advogada e professora de direito e tecnologia no IDP
GOVERNO E INICIATIVA PRIVADA
O Pbia ainda citou uma série de iniciativas de aplicação de inteligência artificial em serviços do governo, como a gestão de imagens e vídeos captados pelas câmeras corporais da polícia, o controle de desmatamento e a política contra evasão do sistema escolar.
Hoje, segundo o plano, a Receita Federal já utiliza, em fase piloto, inteligência artificial para auxiliar no julgamento de processos administrativos. O governo também planeja disponibilizar um chatbot para facilitar o atendimento consular em diversos idiomas até dezembro deste ano.
O plano, porém, não especifica se os modelos de inteligência artificial adotados no serviço público terão de ser desenvolvidos pelo próprio governo ou se terão de ser contratados por terceiros.
“O governo, nessa parte de tecnologia, tem participação de vários parceiros externos, de serviços terceirizados, mas não comenta muito sobre o tema”, diz Jesaias Arruda, vice-presidente da Abranet (Associação Brasileira de Internet).
Entre 2024 e 2028, o governo investirá R$ 100 milhões em startups que proponham soluções de inteligência artificial a serem adotadas na administração pública.
A maior parte do investimento será destinada à iniciativa privada. Startups e micro e pequenas empresas seriam destino de R$ 2,3 bilhões. Mais R$ 9,1 bilhões seriam destinados ao programa de reindustrialização Nova Indústria Brasil.
Fonte:Cidades Verde.