Niède Guidon: a arqueóloga que descobriu o ‘Berço do Homem Americano’ no Piauí
A arqueóloga Niède Guidon nasceu em Jaú, São Paulo em 12 de março de 1933. Estudou história natural na USP (Universidade de São Paulo) e fez doutorado pela Universidade de Paris. Niède morreu nesta quarta-feira (4), aos 92 anos, vésperas do 46º aniversário do Parque Nacional Serra da Capitara.
Desde a chegada da “doutora”, como Niède é conhecida por alí, muita coisa avançou em São Raimundo Nonato. Uma série de demandas se concretizaram, como a construção de uma fábrica de cerâmica, restaurantes, hotéis e pousadas e o aeroporto do município.
A trajetória de Niède Guidon (1933–2025) foi determinante não apenas para as descobertas pré-históricas, mas também para a construção das bases políticas, institucionais e de infraestrutura que permitiram a sobrevivência e o florescimento do parque.
1963
Niède ouviu falar em São Raimundo Nonato pela primeira vez em 1963, quando trabalhava no Museu Paulista da USP. À época, ela organizava uma exposição com fotografias de pinturas pré-históricas encontradas em Lagoa Santa (MG), consideradas as únicas do tipo no Brasil.
Em uma visita do então prefeito de Petrolina (PE), Niède soube de desenhos rupestres no sertão do Piauí. O prefeito disse que na região havia “uns desenhos de caboclos” parecidos com os da exposição. As imagens mostravam um abrigo sobre rochas na Serra da Capivara, no Piauí. Apesar de animada para conhecer aquele local, os planos de Niède foram atrasados pela ditadura militar de 1964.
1964
Apesar de animada para conhecer aquele local, os planos de Niède foram atrasados pela ditadura militar de 1964. A arqueóloga exilou-se na França e viveu em Paris por oito anos.
1970
Voltou ao Brasil para uma pesquisa sobre populações indígenas de Goiás, conseguiu passar pelo Piauí para finalmente ver de perto as pinturas que não haviam saído de sua cabeça. O que viu foi algo novo, muito diferente dos padrões conhecidos e estudados no restante do país. Niède sabia que era um achado importante.
Foto: Fumdham
1973
Pediu ajuda ao governo francês e organizou uma missão de pesquisa em 1973. Daí em diante, passou a se dividir entre Paris, onde lecionava na Escola de Estudos Avançados em Ciências, e São Raimundo Nonato (a 530 km de Teresina), juntando seus alunos franceses com os colegas da USP e formando grupos interdisciplinares com diversas instituições de pesquisa para estudar a região.
Para a pesquisadora, os esqueletos encontrados no Piauí, assim como os encontrados em Minas Gerais na década de 1970, apresentam características morfológicas mais próximas de povos africanos e aborígenes do que de povos asiático.
A ideia do povoamento através do estreito de Bering é sólida, existe compatibilidade genética entre indígenas americanos e povos de etnia asiática. Mas ela não é suficiente para explicar tudo.
A teoria de Clóvis, tradicionalmente aceita, afirma que o homem chegou ao continente americano durante a época em que o estreito de Bering esteve congelado, criando uma passagem entre a Sibéria e o Alasca, há cerca de 13 mil anos. Teria descido desde a América do Norte até ocupar, mais tardiamente, as terras da América do Sul.
As pesquisas de Guidon, no entanto, apontam vestígios da presença humana no Piauí que datam de 60 mil anos ou mais. Ela assegurava que os indícios poderiam chegar a 105 mil anos na Serra da Capivara.
Foto: Fumdham
1975
Em 1975 iniciou o apoio formal do CNPq às pesquisas na região, com concessão das primeiras bolsas de estudo para datação por carbono-14 e análise estratigráfica, garantindo continuidade mesmo em períodos de instabilidade política. O apoio do CNPq às pesquisas realizadas na região se iniciou em ação conjunta com o CNRS e durou até o início dos anos 2000. A primeira classificação regional dos registros rupestres aconteceu em 1975 e, três anos depois, tiveram início as excavações para contextualizar de forma cronológica as pinturas rupestres da região.
Niède escreve uma carta ao então governador Dirceu Arcoverde, pedindo e detalhando medidas urgentes para proteger o Parque Nacional Serra da Capivara. Um documento histórico, escrito à mão
1978
Tiveram início as escavações sistemáticas para contextualização cronológica das pinturas, resultando no descobrimento de esqueletos com características morfológicas atípicas frente aos padrões Clóvis.
Foto: Fumdham
1979
O Parque Nacional Serra da Capivara foi criado pelo governo brasileiro em 5 de junho de 1979. Com mais de 100 mil hectares, a área abrange os municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. Entretanto, a arqueóloga sabia que apenas delimitar a área do parque não seria suficiente. Também era preciso fazer um trabalho social no cotidiano dos moradores da região.
Niède sempre lutou contra o isolamento e o abandono do local. Acreditava que facilitar o acesso ao parque seria a garantia de sua preservação.
Com a criação do parque, algumas famílias tiveram que deixar suas casas. Niède fez o possível para realocá-las e encarou como uma batalha pessoal o direito à moradia, embora enfrentasse obstáculos políticos. Algumas pessoas conseguiram melhorar de vida com as novas oportunidades, apesar de outros terem perdido suas terras e precisarem deixar a região.
Foto: Fumdham
1980
Análises de carbono-14 do Museu do Homem Americano revelaram vestígios humanos com idade superior a 40 mil anos, provocando debates internacionais sobre a ocupação pré-clovis das Américas, segundo informações do site Folha do Meio Ambiente de agosto do ano passado.
1986
Em 1986, Niède criou a Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano), entidade administrativa do parque, responsável pelo estudo do acervo natural e cultural. Desde o início, a fundação teve como objetivo o desenvolvimento socioeconômico e cultural da região. O plano de manejo do parque incluiu a integração da população local às ações de preservação. A pesquisa científica e projetos de formação técnica na região, compensando a carência de estrutura do órgão federal também faziam parte.
1991
O legado de sua determinação vai além da mudança de paradigma nas teorias arqueológicas. Ela lutou para que o Parque Nacional Serra da Capivara fosse incluído na lista de Patrimônio da Humanidade da Unesco, conseguindo o feito em 1991.
Incorporação do Parque Nacional Serra da Capivara na lista de Patrimônio Mundial da UNESCO, conferindo visibilidade e salvaguarda adicionais contra pressões políticas locais.
Foto: Fumdham
1995
Guidon denunciou publicamente cortes orçamentários e tentativas de suspensão dos serviços de atendimento do ICMBio, mobilizando apoiadores no Congresso e na mídia para evitar o fechamento temporário de unidades de pesquisa.
1998
Inauguração do Museu do Homem Americano, sob gestão da FUMDHAM, consolidando um espaço museológico dedicado aos achados pré-históricos do parque e à educação ambiental.
Foto: Yala Sena/Cidadeverde.com
2001
Inauguração da primeira fábrica de cerâmica voltada à produção de réplicas de arte rupestre, gerando emprego e estimulando o artesanato regional como alternativa socioeconômica.
Foto: Divulgação Fumdhan
2007
Em agosto de 2007, Niède Guidon ameaça a fechar as portas do Parque Nacional afirmando em entrevista à Folha de S Paulo que não aguenta mais a briga anual por recursos públicos para administrar o local. Na entrevista, a cientista defende que os parques nacionais tenham um orçamento pré-definido e critica a criação do Instituto Chico Mendes, órgão recém-aberto para cuidar das unidades de conservação.
Em um dos trechos da entrevista, ao ser que não é a primeira vez que ameaça fechar o parque por falta de recursos, Niède destaca: “Há anos que estamos trabalhando nesse sistema. Chega dinheiro, todo mundo suspira aliviado e continua trabalhando. Mas é um estresse muito grande. É por isso que estamos lutando para conseguir um orçamento fixo para o parque. O governo federal deveria garantir isso. O que nos tem salvo esses últimos anos tem sido a Petrobras. A Chesf já nos fez doações, a Caixa Econômica, os Correios”.
2015
Inauguração do Aeroporto de São Raimundo Nonato, com investimento de R$ 20 milhões. Embora a pista só tenha sido liberada pela Anac um mês após a cerimônia, a falta de voos regulares evidenciou gargalos logísticos no acesso ao parque.
2018
Museu da Natureza é inaugurado construído com recursos do BNDES e sob gestão da FUMDHAM em parceria com o ICMBio. O equipamento ampliou o escopo científico e atraiu novos públicos ao destino. O visitante percorre 12 salas que conterão informações sobre o surgimento do do Sistema Solar e de fases da pré-história. Todos os setores possuem interatividade para os visitantes. O museu usa tecnologia de ponta com imagens em 3 D simulador de asa delta na Serra da Capivara, dentre outras tecnologias.
Foto: Andre Pessoa
2022
Operacionalização dos primeiros voos comerciais para São Raimundo Nonato, registrada em dezembro. A suspensão dos voos aconteceu em janeiro 2025, retornando o parque à dependência exclusiva de transporte rodoviário e mantendo em debate a retomada da aviação regional.
2024
Hotel Serra da Capivara reabriu suas portas em abril, após Parceria Público-Privado (PPP) entre o governo do estado e grupo empresarial. O hotel, que foi inaugurado em 1992, mas passou por dificuldades foi reaberto quase 30 anos depois.
Foto: Yala Sena/Cidadeverde.com
2025
Falecimento de Niède Guidon em 4 de junho, véspera do 46º aniversário do parque. Sua partida reacendeu discussões sobre garantias orçamentárias e o legado de pesquisa que precisa ser preservado. O enterro da arqueóloga Niède Guidon contou com cerca de 60 pessoas em momento bastante reservado e de emoção. Ela foi sepultada no jardim de sua casa, no bairro Campestre, em São Raimundo Nonato.
Fonte: Cidade Verde.